O impacto do coronavírus no transporte coletivo

Por Francisco Christovam



Uma das frases que mais se ouve atualmente é: “passada a crise, nenhum setor da economia voltará a ser como era antes”. Indo um pouco mais além, pode-se dizer que, quando tudo voltar à normalidade, as empresas de transporte coletivo deverão reorganizar suas finanças, repactuar suas relações com o Poder Concedente, rever seus planos de negócio e, o mais importante, repensar seus modelos de gestão e de governança empresarial.

Embora a chegada do coronavírus tenha causado transtornos de toda ordem, as empresas operadoras se adaptaram muito rapidamente à nova situação e às imposições próprias de uma crise desconhecida e extremamente complexa, que assolou a área da saúde pública. Atendendo às recomendações do Poder Concedente ou mesmo por iniciativa própria, as empresas mudaram radicalmente seus procedimentos de limpeza e de higienização dos veículos e do pessoal de operação, especialmente daqueles que têm contato direto com os passageiros. Em um curto espaço de tempo, a grande maioria das empresas já havia providenciado encomendas de álcool etílico hidratado (70º INPM) e de álcool gel a granel e mobilizado equipes internas ou terceirizadas de limpeza, a fim de garantir melhores condições de assepsia às instalações fixas e aos veículos.

Mas, com a decretação das medidas de isolamento ou de distanciamento social, a brusca queda de demanda de passageiros que, nas principais cidades do País, variou de 70% a 80%, fez com que as empresas tivessem que reduzir bastante a oferta de lugares, quase que na mesma proporção da redução do número de passageiros, salvo raras exceções.

Deixando de lado medidas judiciais doidivanas e decisões políticas fora do contexto, que determinaram a operação plena da frota, mesmo com a drástica redução do número de passageiros, houve a necessidade de diminuir a quantidade de veículos em operação, para garantir o atendimento da população e, ao mesmo tempo, reduzir os custos operacionais.

Com o desequilíbrio entre oferta e demanda, as empresas operadoras, principalmente aquelas cuja remuneração depende exclusivamente da arrecadação proveniente do pagamento das tarifas, se viram numa situação extremamente delicada. Ao se analisar a planilha de custos dos serviços de transporte coletivo urbano de passageiros, da maioria das cidades brasileiras, verifica-se que, na média, 51% do custo total são custos fixos (mão de obra e depreciação), 32% são custos variáveis (combustível, rodagem e peças de reposição) e 17% são outros custos (remuneração do capital, tributos e despesas administrativas).

Assim, quando a frota fica retida nas garagens, as empresas deixam de gastar apenas a parcela referente ao custo variável, ou seja, combustível, pneus e câmeras e peças de reposição. Todos os demais custos que compõem o custo total da produção dos serviços permanecem inalterados, pois independem da circulação dos veículos. Isso vale para o pagamento da mão de obra contratada, para a depreciação dos ativos, para a remuneração do capital empregado e para o pagamento das despesas administrativas e dos tributos incidentes.

Como a parcela mais significativa do custo de produção dos serviços diz respeito ao custo de pessoal – que é da ordem de 43% –, a brutal queda na arrecadação deixou as empresas sem condições financeiras para quitar despesas correntes e cumprir suas obrigações trabalhistas com os motoristas, cobradores, fiscais e com o pessoal administrativo e de manutenção.

Independentemente do esforço que cada empresa operadora buscou realizar junto ao Poder Concedente, no sentido de viabilizar medidas que pudessem mitigar os problemas financeiros que poderiam afetar a prestação dos serviços de transporte coletivo de passageiros, principalmente nas cidades de médio e grande portes, é preciso registrar o enorme empenho dos técnicos e dirigentes da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, junto às autoridades do Governo Federal, na apresentação de propostas, discussão de ideias e busca de soluções, para garantir que nenhuma solução de continuidade pudesse acometer o setor.

A título de exemplo, a Emenda Aditiva Nº 026, que altera o artigo 13 da Medida Provisória Nº 936, criando o Programa Emergencial de Transporte Social do Governo Federal, proposta pelo Deputado Federal Jerônimo Goergen, foi feita com base nas sugestões discutidas e apresentadas pela NTU.

É preciso reconhecer, também, que a Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, a Frente Nacional de Prefeitos e o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana não mediram esforços para conferir mais peso técnico e político às reivindicações e sugestões propostas pela Entidade que representa as empresas operadoras de transporte coletivo no País.

Nesse sentido, a NTU encaminhou às áreas competentes do Governo Federal, particularmente ao Ministério da Economia, propostas para gerar recursos extraordinários, destinados a custear os serviços no período da crise, e reduzir custos operacionais. Dentre as propostas apresentadas destacam-se a obtenção de linhas de crédito, com juros subsidiado, junto às instituições financeiras oficiais, para garantir capital de giro; a aquisição de créditos eletrônicos de transporte, no montante de R$ 2,5 bilhões, por mês, pelo Governo Federal, para serem destinados aos programas sociais sob a responsabilidade da União; o fornecimento de óleo diesel direto pelas distribuidoras, a preço de custo; e a suspensão temporária dos contratos de trabalho, da mão de obra eventualmente ociosa, com o pagamento integral do seguro desemprego.

Entretanto, se as propostas ou sugestões já apresentadas não forem viabilizadas, com a implantação imediata das ações previstas, não haverá como impedir que várias empresas, em muitas cidades espalhadas por todo o País, interrompam suas atividades e deixem de operar as linhas e de transportar passageiros, por absoluta falta de condições financeiras.

O transporte coletivo de passageiros é, por definição constitucional, essencial e estratégico e, também, por assim dizer, é o serviço público que viabiliza os demais serviços de utilidade pública, que tornam viável o funcionamento das cidades e o dia-a-dia das pessoas. Sem o transporte, a maioria dos cidadãos não chega ao local de trabalho, para garantir os recursos de que necessita para viver; não se desloca até a escola, para adquirir conhecimento e formação; não acessa o médico ou o hospital, para tratar as suas doenças; e não chega até as lojas ou ao supermercado, para comprar comida e outros produtos necessários à sua sobrevivência. Sem o transporte, as pessoas entram em isolamento – palavra da moda – laboral, social e vivencial.

O grande receio de quem é responsável pelos deslocamentos das pessoas, principalmente nas grandes cidades, é o isolamento empresarial, que deixará milhões de pessoas sem condições de poder exercer o seu direito de ir e vir e de contribuir para que a economia do País também não entre em colapso, como poderá acontecer, eventualmente, com a saúde pública.

Por tudo isso, não há como negar que a crise provocada pelo coronavírus foi o gatilho que faltava para despertar nas autoridades governamentais a real dimensão e a relevância do transporte coletivo de passageiros. Neste ano, com a realização das eleições municipais, é o momento de transformar promessas de campanha em projetos estruturados, que possam garantir a prestação desse serviço público com a melhor qualidade possível e a custos razoáveis.

Não há mais porque relegar o transporte coletivo de passageiros a um plano secundário no rol das prioridades e tratá-lo muito mais como um negócio de empresários privados do que como um direito do cidadão e um dever do Estado.

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